quarta-feira, 8 de maio de 2019

Os natais de Helena

* Conto vencedor do Concurso de Contos "O Espírito de Natal em Evidência" da Revista Evidência de Gravataí, em 2012.

Quando o mês de dezembro se aproxima, Helena começa a recordar de seus Natais da infância. Não eram banquetes suntuosos, nem havia fartura de presentes e comilanças. Hoje ela observa seus filhos e netos decorando a casa, armando a árvore de Natal, mergulhando em prestações de lojas de roupas e brinquedos. Em sua infância, Helena não tinha aquelas comodidades. As preocupações dela e de sua família eram outras, e tinham razões muito diferentes.
Helena, seus pais e seus irmãos moravam em um casebre na beira de um riacho. Viviam basicamente daquilo que plantavam na horta do terreno ao lado, além do modesto emprego de balconista de bar do pai de Helena. O que ganhavam era gasto em roupas simples e comida pouca, e o restante era cuidadosamente economizado. Porém não eram miseráveis, nem nunca passavam fome.
Helena hoje vê seus netos no Natal pedindo brinquedos de alta tecnologia, celulares de última geração, o mais novo modelo de computador ou o mais interativo dos videogames. As crianças querem presentes? Que mandem um e-mail ao Papai Noel e o que desejarem seus pais comprarão no cartão de crédito. Helena se entristece vendo esse ímpeto consumista em que o Natal se transformou. Lógico que ela quer ver suas crianças felizes e faria de tudo para alegrá-las. Mas Helena sente que as crianças precisam de algo mais, algo que lhes falta e que, na infância dela, por mais pobre e humilde, tinha um valor inestimável.
Quando o pai de Helena voltava do trabalho com caixinhas coloridas nas sacolas, as crianças já se agitavam e festejavam, pois sabiam que a noite de Natal estava chegando e que seria uma noite cheia de alegria, doces e muito amor. Uma verdadeira noite feliz. O que havia nas caixinhas? Bem, algumas balas, caramelos, biscoitos, guloseimas que o dono do bar retirava do estoque devido à má aparência ou à validade próxima do vencimento. Mas não importava. O pai de Helena juntava pedaços de madeira no armazém e confeccionava, ele mesmo, aquelas singelas caixinhas, decoradas com tinta têmpera e muito afeto.
Ao chegar em casa, sua esposa não lhe cobrava presentes para ela, pois apenas observar a felicidade dos filhos já a fazia sentir-se plena e satisfeita. Naquela noite, não havia peru nem panetone. Porém havia conversas animadas, contação de histórias, risadas, abraços, beijos e orações. As crianças não valorizavam mais os doces em si, mas o que eles representavam: o amor incondicional de seus pais e o desejo de ver os filhos contentes.
Neste final de ano, Helena, seus filhos e netos viajarão à Europa para ver a neve e os castelos medievais. Em sua infância, seus passeios se resumiam a breves caminhadas na beira do riacho. Ela só via a neve em figuras de revistas e para ela castelos eram sonhos de contos de fadas em que ela era a princesa que tudo tinha e tudo podia.
Para a pequena Helena, o Papai Noel era uma espécie de deus misterioso e benevolente, aguardado com ansiedade a cada Natal. Hoje ela crê que o bom velhinho é apenas uma figura mitológica… Será?
Helena agora olha o retrato de quando tinha sete anos, a única fotografia de sua infância. Aquela menina loira, doce e travessa, de vestido verde, olha puramente para a senhora de rosto enrugado e cabelos brancos. Uma troca de olhares sem cobrança ou arrependimento, apenas de ternura e saudade.
Uma lágrima corre pelas rugas de Helena. A neta se aproxima.
— Está chorando, vovó?
— Não é nada, querida — diz Helena sorrindo. — A vovó só está ansiosa esperando o Papai Noel.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Um conto de Natal - O carvalho desajeitado

* Conto vencedor do Concurso de Contos "O Espírito de Natal em Evidência" da Revista Evidência de Gravataí, em 2011.


Caía a noite quando os três amigos Maria, Josef e Ali se encontraram no local combinado, embaixo de um carvalho de médio porte, cujos galhos se retorciam com cada lufada de vento. A árvore era tão desajeitada que os habitantes daquele povoado no deserto evitavam observá-la por muito tempo, por receio da má sorte. No entanto os três amigos, tão logo se conheceram, elegeram a insignificante planta como ponto de encontro diário, longe dos olhos controladores dos pais.

Maria, Josef e Ali eram de famílias muito diferentes, mas partilhavam semelhantes sonhos, brincadeiras e personalidades. Apesar dos conflitos entre os adultos, as crianças nem se importavam e dedicavam-se a suas sadias diversões, como se não existisse nenhuma barreira entre elas.

Aquela noite de dezembro era especial, pois Maria iria mostrar aos amigos como sua família comemorava certa data festiva que se aproximava. Ali e Josef observavam espantados a menina depositar cuidadosamente sob a árvore imagens de gesso representando animais, pessoas e anjos. Chamou-lhes a atenção especialmente quando Maria pôs a imagem de um bebê deitado no que perecia um cesto de feno, ladeado por um casal de aparência piedosa.

— Quem é esse? — perguntou Josef, o mais curioso dos três.

— É o menino Jesus — explicou Maria —, aquele que nasceu em Belém e veio para nos salvar, como já contei ontem a vocês.

— Meu pai me falou algo a respeito — lembrou Ali. — Parece que era um grande profeta que morreu há muito tempo.

— Ele morreu, mas ressuscitou e subiu ao céu — disse Maria — e agora olha por cada um de nós.

Josef parecia incrédulo.

— Esse bebê aí não parece o salvador do mundo, tão pequeno e tão pobrezinho.

Maria abriu a boca para explicar algo ao amigo, mas foi interrompida por um grito raivoso. Os três meninos, assustados, viraram-se e deram com o pai de Ali, que tinha o rosto vermelho e bufava.

— O que você está fazendo aí, misturado com esses dois infiéis imundos?! — berrou, agarrando o braço do filho com força e puxando-o para si. Quando viu as imagens de gesso, seus olhos se esbugalharam e o homem começou a pegar as estátuas e atirá-las ao tronco da árvore, fazendo-as espatifar em muitos pedaços, enquanto gritava: “Profanação! Sacrilégio!” Maria observava a cena, perplexa.

— O presépio da minha mãe… — choramingou. Pensou no que seus pais fariam se descobrissem que as lindas e caras imagens compradas para aquele Natal haviam sido quebradas pelo velho vendedor de tapetes barbudo e fanático. 

Maria não entendia por que os pais de seus amigos não gostavam dela e de sua família. Eles tinham certos costumes muito diferentes: enquanto os pais de Josef frequentavam a sinagoga, rezavam a Javé e liam o livro “Torá”, os pais de Ali oravam a Alá debruçados em tapetes, voltados para Meca, e seguiam o que dizia um livro chamado “Alcorão”. Para a menina, aqueles hábitos eram estranhos, mas ela os respeitava, pela amizade de Ali e Josef. 

Ao chegar em casa, Maria explicou aos pais, muito receosa, o que acontecera sob o carvalho. Eles repreenderam a filha por ela ter saído de casa à noite para se encontrar com seus amigos, ainda mais naqueles tempos conflituosos e perigosos, porém não se abalaram com o radicalismo do pai de Ali, com o qual já estavam acostumados.

— Minha filha — começou o pai —, seu amigo pertence a uma família fundamentalista, que não tolera a convivência com outros povos e religiões.

— Dizem que um primo dele se envolveu com o terrorismo… — sussurrou a mãe.

— Mas eles são exceções — continuou o pai —, porque aquela religião não prega o ódio e a intolerância, e sim o amor e a harmonia, assim como todas as outras crenças e culturas. Você tentou mostrar a seus amigos o espírito do Natal, mas o pai do Ali não entendeu. O espírito de paz, harmonia, união e fraternidade, esse sim o verdadeiro espírito do Natal, não é restrito a uma só religião, mas certas pessoas, cegadas pelo fanatismo, não compreendem. Vocês são ainda crianças, são sinceras e sem maldade, por isso o Natal de certa forma é voltado a vocês. Você nos orgulha, filha, porque, assim como a mãe de Jesus, que tem o mesmo nome que o seu, esforça-se para que todos se contagiem com o maravilhoso sentimento de amor que o Natal representa.

— Não importa a religião ou o país onde se nasce — falou a mãe —, mesmo com nossas diferenças, todos somos iguais. 

Maria ouviu as palavras de seus pais com surpresa e admiração. Sabia que no dia seguinte teria muito o que contar a seus amigos, assim que voltassem a se encontrar. 

Mas não houve dia seguinte. À véspera do Natal, o carvalho esquisito agitou seus galhos pela última vez. Pela manhã, um avião militar carregado de explosivos caiu sobre o povoado, dizimando quase toda a população. Mais uma vez, a guerra e o ódio mostravam seu maléfico poder. Mas não triunfaram sobre o espírito de paz do Natal, que um dia haverá de conquistar todos os corações humanos.

Quem me contou esta história foi minha avó Maria, a única sobrevivente do ataque ao seu povoado, há quase setenta anos. Após ser retirada de escombros por bondosos pastores, a menina encontrou um novo lar, mudou-se para o Brasil e aqui constituiu família. Ela nunca esqueceu aquele Natal que, apesar de ter sido o mais triste, foi ao mesmo tempo muito feliz, pois fez duas grandes amizades que guarda até hoje no coração, porque venceram os limites do tempo e as barreiras da intolerância.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Divagações noturnas

No campo científico e também no filosófico, tudo o que existe, tudo o que vemos e sabemos, e também o que não conhecemos, pode ser comprimido de tal maneira que reste uma existência nula. "Só sei que nada sei", disse um filósofo grego. Isto é, se considerarmos que estamos incluídos numa dimensão bem maior do que nossa consciência possa alcançar, há uma grande probabilidade de nós, seres humanos, nem existirmos dentro dessa dimensão. Existir ou não existir são concepções humanas - há algo maior que supera todas as nossas noções. "Ser ou não ser: eis a questão", declarou Shakespeare. Talvez todo o tempo e o espaço sejam uma breve reação química de um dos neurônios de um ser superpoderoso que não conseguimos conceber. Deus. Quem pode afirmar? Quem pode negar? Somos uma minúscula poeira no universo. "Tu és pó e ao pó voltarás", sentencia-nos o Gênesis, o livro que narra o princípio de tudo. Se somos pó, resta-nos atentar para que, em nossa fugaz e quase nula existência, não sujemos os móveis da casa nem provoquemos alergia em ninguém. "Carpe diem - Aproveite o dia", disse um outro filósofo. Deus é grande.

domingo, 18 de outubro de 2015

Por que escrevo

Muito já foi falado das razões que motivam alguém a escrever. Gigantes da literatura teceram frases antológicas sobre essa arte, e alguns escritores talentosos são dotados de uma generosidade tamanha que repassam suas próprias técnicas a principiantes na forja da ficção, com o claro propósito de não permitir que morra a prática literária.

Quando me perguntam por que escrevo, respondo simplesmente: “Porque gosto de ler!” Não tenho regra estabelecida nem fórmula pronta, nenhum segredo. Em momentos propícios, a escrita flui como correnteza, porém na maior parte do tempo minhas ideias são águas paradas, sem movimento, sem ondas perturbadoras. Mas é na calmaria que a água se torna mais transparente e se enxerga mais profundo. Na fase em que não escrevo, consigo perceber com maior nitidez as coisas à minha volta, tento decifrar as pessoas com quem convivo, suas emoções e anseios, e essa pesquisa silenciosa transcorre até o instante em que me descubro munido de uma boa bagagem de ideias suficientes para um novo texto.

Já enquanto estou escrevendo, cada célula do meu cérebro se concentra inteiramente no mundo que construo, nos personagens a quem dou vida. Minha própria existência se torna mera realidade paralela, secundária, como quando assistimos a um filme muito bom em que nada mais importa senão o que se passa na tela. Sou assim com meus textos, não deixo portas abertas nem no quarto nem na alma e cuido com enorme zelo das histórias que produzo, feito a mãe que amamenta num ato amoroso e isolado do mundo, sem necessitar de mais ninguém, apenas do contato com sua delicada criatura.

Exatamente agora, enquanto escrevo, meu time do coração - o Internacional - está em campo, mas nesse momento não me interessam tanto as batalhas e conquistas coloradas... Minha prioridade é regar essa plantinha literária para que não esmoreça nem seque; depois de observar, satisfeito, meu frágil vegetal criando raízes e rendendo bons frutos, minha atenção poderá se voltar aos gols da vida cotidiana.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Minhas leituras inesquecíveis

Olá!

Nesse feriado ensolarado, nada melhor que ficar ao ar livre, ao som dos pássaros, na companhia de um bom livro!

Ao longo da minha trajetória de leitor voraz, muitos livros me marcaram. Fiz uma "pequena" lista (em ordem alfanumérica) com algumas obras que, além de despertar meu prazer de ler, fazem crescer em mim aquele desejo íntimo de ser lido também. É uma seleção bem eclética, veja quais você conhece:

  • 23 histórias de um viajante - Marina Colasanti
  • A águia que queria ser Águia - Juan Carlos Roca
  • A casa das sete mulheres - Leticia Wierzchowski
  • A casa tomada - Julio Cortázar
  • A escrava Isaura - Bernardo Guimarães
  • A ilha perdida - Maria José Dupré
  • A mesa voadora - Luís Fernando Verissimo
  • A metamorfose - Franz Kafka
  • A minha versão da história - Carlena Weber
  • A morte de Olivier Bécaille - Émile Zola
  • A mulher que comia dedos - Ítalo Ogliari
  • A mulher que escreveu a Bíblia - Moacyr Scliar
  • Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll
  • Amor - Clarice Lispector
  • Anjos e demônios - Dan Brown
  • Boca do inferno - Ana Miranda
  • Caminhando na chuva - Charles Kiefer
  • Contos - Artur Azevedo
  • Contos - Machado de Assis
  • Dia de São Nunca à tarde - Roberto Drummond
  • Dois irmãos - Milton Hatoum
  • Ensaio sobre a cegueira - José Saramago
  • Éramos seis - Maria José Dupré
  • Espumas flutuantes - Castro Alves
  • Felicidade clandestina - Clarice Lispector
  • Feliz ano novo - Rubem Fonseca
  • Harry Potter (série) - J.K. Rowling
  • Histórias extraordinárias - Edgar Allan Poe
  • Incidente em Antares - Erico Verissimo
  • Martin Fierro - José Hernández
  • Memórias de uma gueixa - Arthur Golden
  • Memórias póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis
  • Mensagem - Fernando Pessoa
  • Música ao longe - Erico Verissimo
  • Navegue a lágrima - Leticia Wierzchowski
  • O afogado mais bonito do mundo - Gabriel García Márquez
  • O caçador de palavras - Walcyr Carrasco
  • O caso dos dez negrinhos - Agatha Christie
  • O centauro no jardim - Moacyr Scliar
  • O código Da Vinci - Dan Brown
  • O Continente - Erico Verissimo
  • O corvo - Edgar Allan Poe
  • O livreiro de Cabul - Asne Seierstad
  • O mistério da ilha de Tökland - Joan Manuel Gisbert
  • O nome da rosa - Umberto Eco
  • O pequeno príncipe - Antoine de Saint-Exupéry
  • O pintor de retratos - Luiz Antonio de Assis Brasil
  • O primo Basílio - Eça de Queirós
  • Odisseia - Homero (adapt. Ruth Rocha)
  • Os miseráveis - Victor Hugo
  • Prata do tempo - Leticia Wierzchowski
  • Quarto de despejo - Carolina de Jesus
  • Quinze anos - Carlos Heitor Cony
  • Reinações de Narizinho - Monteiro Lobato
  • Sete ossos e uma maldição - Rosa Amanda Strausz
  • Tchau - Lygia Bojunga
  • Viagem à Lua - Júlio Verne
  • Vidas secas - Graciliano Ramos

E há outros dos quais não me recordo agora... E muitos que ainda estão por vir. Alguns desses te marcaram também?

Tenha um ótimo feriado!
Beijos,
Jackson Reis

sábado, 29 de agosto de 2015

Paradigmas



Não tente me convencer que o sol se põe, meu amor
Que a chuva cai no telhado, que as flores mudam de cor
Não sou capaz de enxergar o que você acha normal
Meu mundo está muito além dessa existência banal

Não me olhe com estranheza se eu não sei ver a beleza
Que se esconde atrás do muro desse prédio tão escuro...

Não consigo entender as revoluções desse mundo
Tudo soa distante como música ao fundo
Eu não sei definir o que acontece na cidade
Porque eu venho de um planeta onde impera a verdade

As notícias nos jornais para mim não são reais
Você vive numa bolha pela sua livre escolha...

Não compreendo a política nem a religião
Só vejo loucos correndo atrás de um pouco de pão
Não sei matar nem morrer em nome dessa ciência
Nem comprar nem vender, comigo tenha paciência!

Não me fale de saudade, pois não sei a minha idade
Só me mostre os mistérios desse mundo sem critérios...

Agora quero voltar pro outro lado do muro
O mundo dentro de mim é muito mais seguro
Meu amor, não me impeça de quebrar paradigmas
Tente você também se libertar desse estigma.


Fonte da imagem: https://studioeureka.files.wordpress.com/2013/08/o-nascimento-do-mundo-salvador-dali.jpg?w=1009

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Hora da Leitura

Estes livros não saem da minha cabeceira, nem da minha cabeça. São obras mais que especiais para mim, pois, além de serem histórias marcantes, suas autoras são pessoas muito queridas e talentosas.

Em A minha versão da história (Ed. Vivilendo, 2015), Carlena Weber - assistente social pós-graduada em Educação Especial - conta sua história real de lutas e conquistas desde que se viu tetraplégica após um acidente. Atravessando altos e baixos ao longo da trajetória de recuperação, ela passa a enxergar tudo sob novos pontos de vista, e desse modo a vida adquire outro significado, muito mais tangível e valioso. Uma história verdadeiramente inspiradora.

Navegue a lágrima (Ed. Intrínseca, 2015), o mais recente romance de Leticia Wierzchowski - renomada escritora gaúcha, conhecida pela obra A casa das sete mulheres -, fala de amor e de perdas. As histórias de Heloísa e Laura se cruzam de forma surpreendente, numa casa de praia no Uruguai, onde o passado ressurge entre reviravoltas do tempo. Heloísa visita o universo da escritora Laura e sua família, e nele encontra respostas para suas próprias angústias. Uma narrativa cheia de emoção e descobertas.

Super-indico estas duas maravilhosas e inesquecíveis leituras!

Beijos,
Jackson Reis

terça-feira, 25 de agosto de 2015

JQSR nas redes sociais

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Beijos,
Jackson Reis



sábado, 22 de agosto de 2015

A cadeira de balanço da Avó

A casa era grande, mas não chegava a ser um palácio. Era antiga e se destacava das outras casas ao redor, perdia-se na sua imponência, parecia orgulhosa como uma velha dama que insiste em manter seu porte de nobreza arcaica enquanto todos à sua volta vestem calças jeans e ouvem Beatles.

Nenhuma família é igual à outra, mas a família que morava naquela casa parecia igual a todas as outras, de tão comum. Os pais eram pessoas precipitadas e impacientes, e viviam sempre compenetrados em afazeres cotidianos, enquanto as crianças, carentes de atenção, aprontavam as mais mirabolantes traquinagens, certas de sua imunidade a qualquer castigo ou censura.

A Avó ficava reclinada na cadeira de balanço corroída pelos cupins, esperando chegar o dia em que o último chá seria servido. Pensava no Avô, aquele velho teimoso e austero, que cultivava com orgulho uma longa barba branca que cobria o pescoço e o peito, barba outrora escura que ela vira branquear-se ao longo dos anos e que agora só existia nos fragmentos da sua memória enfraquecida pela demência. Vivia seus dias assim, distante e absorta em reminiscências, como se o mundo se resumisse na saudade que sentia do Avô e no leve e constante balançar da cadeira, para lá e para cá, para lá e para cá... Era de pouca fala; vez ou outra, soltava um comentário incoerente, dizia algo que não correspondia ao momento. Como na vez em que o filho lhe contara que havia sido promovido no trabalho. Ela sorrira, sinal de que tinha escutado bem (não estava surda), parecendo radiante com a notícia.

— Não podemos deixar o cachorro subir no sofá — dissera, após alguns segundos em silêncio.

A frustração do filho ficara visível diante daquelas palavras nada motivadoras. Pobre de sua mãe, que sucumbia cada vez mais à caduquice. E pobres deles, que não tinham cachorro ou nenhum outro bicho para distraí-los.

A esposa passava os dias e as noites a queixar-se da vida e a reclamar de tudo: da morosidade do casamento, das constantes desobediências dos filhos, da sujeira que assentava sobre os móveis, do desleixo com que tudo ali era tratado, tanto os objetos como os assuntos. Porém o que mais a irritava eram os desvarios da sogra, a quem considerava um estorvo na casa e na harmonia familiar, a verdadeira causa da deterioração conjugal e da indisciplina das crianças. Não importava a questão que viesse à tona, a Mãe sempre procurava uma maneira sutil de atribuir à sogra o motivo do problema, mesmo quando sabia que ela não tinha culpa nenhuma.

Aqueles pequenos incômodos acumulavam-se na sua mente como se fossem preparativos para um enorme infortúnio que ainda estava por vir. Pesava sobre a Mãe uma grande responsabilidade: ela era a voz que colocava as coisas em ordem, que tinha o poder de aquietar os ânimos ou mesmo acendê-los. Mas toda aquela carga a deixava esgotada, pois apesar de ser a voz mais ouvida ali dentro, era a menos compreendida. E a Avó era sempre a responsável por tudo.

Não havia tempo ocioso nem interesse em diversões, nunca programavam algo especial para fugir da cansativa rotina, uma viagem, uma brincadeira, nada. A vida transcorria numa profusão de brigas, acusações mútuas, lamentos, cabeças sob pressão. No entanto, apesar desses percalços, de algum modo misterioso todos naquela casa mantinham uma pequena esperança de viver dias melhores no futuro.

As coisas estavam nesse pé quando um dia a velha morreu. Achava-se, como de costume, na sua cadeira favorita, a cabeça apoiada no espaldar, os olhos inexpressivos: por isso, ninguém se deu conta de que a Avó não movera nenhum músculo a manhã inteira, nem falara uma única palavra. Ao meio-dia, a nora chamou-a para o almoço e estranhou que a cadeira não estava balançando. Sem ouvir resposta, aproximou-se e tocou a face da sogra, constatando que ela estava já fria e dura. Não conseguiu conter um sorrisinho de alívio no canto da boca.

Na manhã seguinte, a Avó já depositada no seu lugar de repouso eterno, o Pai e a Mãe decidiram se mudar para um apartamento no centro da cidade, convictos de que precisavam renovar as mentes, inalar novos ares, pois tudo naquele casarão remetia à falecida. O único pertence do qual não se livraram e resolveram transferir para o novo lar foi a cadeira de balanço, como uma relíquia, uma lembrança viva da sua muda presença. Colocaram o objeto no centro da sala, feito uma peça de museu em exibição permanente. A madeira estava tão corroída que precisava ser urgentemente restaurada e tratada, antes que os cupins terminassem o serviço destrutivo. Juraram que, salvo em ocasiões peculiares, ninguém jamais se sentaria ali. As crianças foram muito bem advertidas nesse sentido. A memória da velha deveria ser respeitada, e aquela cadeira servia como um altar ao seu espírito.

Dias calados e tristonhos se arrastaram, até que numa certa noite deu nas ideias da Mãe sentar-se na cadeira da Avó. Assim, sem pretensão alguma, sem planejamento prévio, ela cometeu aquele pequeno delito, enquanto o marido e os filhos dormiam. Sentiu-se imensamente satisfeita em dominar o território que antes era exclusivo da sogra, aquele assento que por tantos anos acomodara as nádegas ressequidas da finada, o espaldar no qual se reclinara por tanto tempo aquela cabeça murcha e embranquecida. Sim, a cadeira agora era sua. A Mãe permaneceu ali por longas horas, deleitando-se com sua conquista. Era alta madrugada e ela não pregara o olho, de tão exultante: enfim, o reino da velha decrépita estava tomado.

Tinha um livro nas mãos, com o qual costumava atravessar as horas de insônia. Era um romance francês, a melhor história que já havia lido. Na cadeira de balanço da sogra, o prazer de ler aquele romance se tornava ainda mais intenso, quase uma apoteose. Nunca se sentira tão senhora de si mesma. Pela primeira vez, experimentava uma profunda plenitude, que nem mesmo o casamento ou o nascimento dos filhos haviam lhe proporcionado. Como se a vida inteira até então tivesse sido uma preparação para aquele momento. Tudo que já conquistara até ali, as vitórias mais gloriosas de repente se tornaram fúteis e insignificantes. No vaivém da cadeira, encontrara finalmente um sentido para a sua existência.

Subitamente, a única janela da sala se abriu, e um vento estranho e forte entrou com violência, como que soprado por alguma divindade zangada, derrubando vasos e fazendo voar papéis. Assustada, a Mãe jurou ter escutado um sussurro baixinho. Era o vento ou uma voz humana? Ela não conseguiu distinguir, e jamais saberia ao certo.

O livro caiu aberto sobre o seu colo. Os olhos, inertes, se fixaram na janela, de onde se podia avistar a lua e as estrelas, as únicas testemunhas daquele momento extraordinário. O tempo estacionou na sala do apartamento, e uma atmosfera pesada e irreal permaneceu suspensa no ambiente. Nenhum grito, nenhum suspiro. Só não houve silêncio absoluto, porque se podia ouvir apenas o contínuo ranger da cadeira, para lá e para cá, um gemido infinito, um barulho que parecia vir de algum mundo sobrenatural.

Enquanto isso, na velha casa imponente e orgulhosa, alguém sorria de satisfação com a bem-sucedida desforra.



Fonte da Imagem:
http://www.feedbackmag.com.br/wp-content/uploads/2012/07/cadeira-de-balanco.jpg