sábado, 22 de agosto de 2015

A cadeira de balanço da Avó

A casa era grande, mas não chegava a ser um palácio. Era antiga e se destacava das outras casas ao redor, perdia-se na sua imponência, parecia orgulhosa como uma velha dama que insiste em manter seu porte de nobreza arcaica enquanto todos à sua volta vestem calças jeans e ouvem Beatles.

Nenhuma família é igual à outra, mas a família que morava naquela casa parecia igual a todas as outras, de tão comum. Os pais eram pessoas precipitadas e impacientes, e viviam sempre compenetrados em afazeres cotidianos, enquanto as crianças, carentes de atenção, aprontavam as mais mirabolantes traquinagens, certas de sua imunidade a qualquer castigo ou censura.

A Avó ficava reclinada na cadeira de balanço corroída pelos cupins, esperando chegar o dia em que o último chá seria servido. Pensava no Avô, aquele velho teimoso e austero, que cultivava com orgulho uma longa barba branca que cobria o pescoço e o peito, barba outrora escura que ela vira branquear-se ao longo dos anos e que agora só existia nos fragmentos da sua memória enfraquecida pela demência. Vivia seus dias assim, distante e absorta em reminiscências, como se o mundo se resumisse na saudade que sentia do Avô e no leve e constante balançar da cadeira, para lá e para cá, para lá e para cá... Era de pouca fala; vez ou outra, soltava um comentário incoerente, dizia algo que não correspondia ao momento. Como na vez em que o filho lhe contara que havia sido promovido no trabalho. Ela sorrira, sinal de que tinha escutado bem (não estava surda), parecendo radiante com a notícia.

— Não podemos deixar o cachorro subir no sofá — dissera, após alguns segundos em silêncio.

A frustração do filho ficara visível diante daquelas palavras nada motivadoras. Pobre de sua mãe, que sucumbia cada vez mais à caduquice. E pobres deles, que não tinham cachorro ou nenhum outro bicho para distraí-los.

A esposa passava os dias e as noites a queixar-se da vida e a reclamar de tudo: da morosidade do casamento, das constantes desobediências dos filhos, da sujeira que assentava sobre os móveis, do desleixo com que tudo ali era tratado, tanto os objetos como os assuntos. Porém o que mais a irritava eram os desvarios da sogra, a quem considerava um estorvo na casa e na harmonia familiar, a verdadeira causa da deterioração conjugal e da indisciplina das crianças. Não importava a questão que viesse à tona, a Mãe sempre procurava uma maneira sutil de atribuir à sogra o motivo do problema, mesmo quando sabia que ela não tinha culpa nenhuma.

Aqueles pequenos incômodos acumulavam-se na sua mente como se fossem preparativos para um enorme infortúnio que ainda estava por vir. Pesava sobre a Mãe uma grande responsabilidade: ela era a voz que colocava as coisas em ordem, que tinha o poder de aquietar os ânimos ou mesmo acendê-los. Mas toda aquela carga a deixava esgotada, pois apesar de ser a voz mais ouvida ali dentro, era a menos compreendida. E a Avó era sempre a responsável por tudo.

Não havia tempo ocioso nem interesse em diversões, nunca programavam algo especial para fugir da cansativa rotina, uma viagem, uma brincadeira, nada. A vida transcorria numa profusão de brigas, acusações mútuas, lamentos, cabeças sob pressão. No entanto, apesar desses percalços, de algum modo misterioso todos naquela casa mantinham uma pequena esperança de viver dias melhores no futuro.

As coisas estavam nesse pé quando um dia a velha morreu. Achava-se, como de costume, na sua cadeira favorita, a cabeça apoiada no espaldar, os olhos inexpressivos: por isso, ninguém se deu conta de que a Avó não movera nenhum músculo a manhã inteira, nem falara uma única palavra. Ao meio-dia, a nora chamou-a para o almoço e estranhou que a cadeira não estava balançando. Sem ouvir resposta, aproximou-se e tocou a face da sogra, constatando que ela estava já fria e dura. Não conseguiu conter um sorrisinho de alívio no canto da boca.

Na manhã seguinte, a Avó já depositada no seu lugar de repouso eterno, o Pai e a Mãe decidiram se mudar para um apartamento no centro da cidade, convictos de que precisavam renovar as mentes, inalar novos ares, pois tudo naquele casarão remetia à falecida. O único pertence do qual não se livraram e resolveram transferir para o novo lar foi a cadeira de balanço, como uma relíquia, uma lembrança viva da sua muda presença. Colocaram o objeto no centro da sala, feito uma peça de museu em exibição permanente. A madeira estava tão corroída que precisava ser urgentemente restaurada e tratada, antes que os cupins terminassem o serviço destrutivo. Juraram que, salvo em ocasiões peculiares, ninguém jamais se sentaria ali. As crianças foram muito bem advertidas nesse sentido. A memória da velha deveria ser respeitada, e aquela cadeira servia como um altar ao seu espírito.

Dias calados e tristonhos se arrastaram, até que numa certa noite deu nas ideias da Mãe sentar-se na cadeira da Avó. Assim, sem pretensão alguma, sem planejamento prévio, ela cometeu aquele pequeno delito, enquanto o marido e os filhos dormiam. Sentiu-se imensamente satisfeita em dominar o território que antes era exclusivo da sogra, aquele assento que por tantos anos acomodara as nádegas ressequidas da finada, o espaldar no qual se reclinara por tanto tempo aquela cabeça murcha e embranquecida. Sim, a cadeira agora era sua. A Mãe permaneceu ali por longas horas, deleitando-se com sua conquista. Era alta madrugada e ela não pregara o olho, de tão exultante: enfim, o reino da velha decrépita estava tomado.

Tinha um livro nas mãos, com o qual costumava atravessar as horas de insônia. Era um romance francês, a melhor história que já havia lido. Na cadeira de balanço da sogra, o prazer de ler aquele romance se tornava ainda mais intenso, quase uma apoteose. Nunca se sentira tão senhora de si mesma. Pela primeira vez, experimentava uma profunda plenitude, que nem mesmo o casamento ou o nascimento dos filhos haviam lhe proporcionado. Como se a vida inteira até então tivesse sido uma preparação para aquele momento. Tudo que já conquistara até ali, as vitórias mais gloriosas de repente se tornaram fúteis e insignificantes. No vaivém da cadeira, encontrara finalmente um sentido para a sua existência.

Subitamente, a única janela da sala se abriu, e um vento estranho e forte entrou com violência, como que soprado por alguma divindade zangada, derrubando vasos e fazendo voar papéis. Assustada, a Mãe jurou ter escutado um sussurro baixinho. Era o vento ou uma voz humana? Ela não conseguiu distinguir, e jamais saberia ao certo.

O livro caiu aberto sobre o seu colo. Os olhos, inertes, se fixaram na janela, de onde se podia avistar a lua e as estrelas, as únicas testemunhas daquele momento extraordinário. O tempo estacionou na sala do apartamento, e uma atmosfera pesada e irreal permaneceu suspensa no ambiente. Nenhum grito, nenhum suspiro. Só não houve silêncio absoluto, porque se podia ouvir apenas o contínuo ranger da cadeira, para lá e para cá, um gemido infinito, um barulho que parecia vir de algum mundo sobrenatural.

Enquanto isso, na velha casa imponente e orgulhosa, alguém sorria de satisfação com a bem-sucedida desforra.



Fonte da Imagem:
http://www.feedbackmag.com.br/wp-content/uploads/2012/07/cadeira-de-balanco.jpg

Um comentário:

  1. Adorei... cada parágrafo me reportou a histórias já vividas e outras ouvidas. Viajei por diversas lembranças durante a leitura. Bom demais..... Parabéns!!!!

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