quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Um conto de Natal - O carvalho desajeitado

* Conto vencedor do Concurso de Contos "O Espírito de Natal em Evidência" da Revista Evidência de Gravataí, em 2011.


Caía a noite quando os três amigos Maria, Josef e Ali se encontraram no local combinado, embaixo de um carvalho de médio porte, cujos galhos se retorciam com cada lufada de vento. A árvore era tão desajeitada que os habitantes daquele povoado no deserto evitavam observá-la por muito tempo, por receio da má sorte. No entanto os três amigos, tão logo se conheceram, elegeram a insignificante planta como ponto de encontro diário, longe dos olhos controladores dos pais.

Maria, Josef e Ali eram de famílias muito diferentes, mas partilhavam semelhantes sonhos, brincadeiras e personalidades. Apesar dos conflitos entre os adultos, as crianças nem se importavam e dedicavam-se a suas sadias diversões, como se não existisse nenhuma barreira entre elas.

Aquela noite de dezembro era especial, pois Maria iria mostrar aos amigos como sua família comemorava certa data festiva que se aproximava. Ali e Josef observavam espantados a menina depositar cuidadosamente sob a árvore imagens de gesso representando animais, pessoas e anjos. Chamou-lhes a atenção especialmente quando Maria pôs a imagem de um bebê deitado no que perecia um cesto de feno, ladeado por um casal de aparência piedosa.

— Quem é esse? — perguntou Josef, o mais curioso dos três.

— É o menino Jesus — explicou Maria —, aquele que nasceu em Belém e veio para nos salvar, como já contei ontem a vocês.

— Meu pai me falou algo a respeito — lembrou Ali. — Parece que era um grande profeta que morreu há muito tempo.

— Ele morreu, mas ressuscitou e subiu ao céu — disse Maria — e agora olha por cada um de nós.

Josef parecia incrédulo.

— Esse bebê aí não parece o salvador do mundo, tão pequeno e tão pobrezinho.

Maria abriu a boca para explicar algo ao amigo, mas foi interrompida por um grito raivoso. Os três meninos, assustados, viraram-se e deram com o pai de Ali, que tinha o rosto vermelho e bufava.

— O que você está fazendo aí, misturado com esses dois infiéis imundos?! — berrou, agarrando o braço do filho com força e puxando-o para si. Quando viu as imagens de gesso, seus olhos se esbugalharam e o homem começou a pegar as estátuas e atirá-las ao tronco da árvore, fazendo-as espatifar em muitos pedaços, enquanto gritava: “Profanação! Sacrilégio!” Maria observava a cena, perplexa.

— O presépio da minha mãe… — choramingou. Pensou no que seus pais fariam se descobrissem que as lindas e caras imagens compradas para aquele Natal haviam sido quebradas pelo velho vendedor de tapetes barbudo e fanático. 

Maria não entendia por que os pais de seus amigos não gostavam dela e de sua família. Eles tinham certos costumes muito diferentes: enquanto os pais de Josef frequentavam a sinagoga, rezavam a Javé e liam o livro “Torá”, os pais de Ali oravam a Alá debruçados em tapetes, voltados para Meca, e seguiam o que dizia um livro chamado “Alcorão”. Para a menina, aqueles hábitos eram estranhos, mas ela os respeitava, pela amizade de Ali e Josef. 

Ao chegar em casa, Maria explicou aos pais, muito receosa, o que acontecera sob o carvalho. Eles repreenderam a filha por ela ter saído de casa à noite para se encontrar com seus amigos, ainda mais naqueles tempos conflituosos e perigosos, porém não se abalaram com o radicalismo do pai de Ali, com o qual já estavam acostumados.

— Minha filha — começou o pai —, seu amigo pertence a uma família fundamentalista, que não tolera a convivência com outros povos e religiões.

— Dizem que um primo dele se envolveu com o terrorismo… — sussurrou a mãe.

— Mas eles são exceções — continuou o pai —, porque aquela religião não prega o ódio e a intolerância, e sim o amor e a harmonia, assim como todas as outras crenças e culturas. Você tentou mostrar a seus amigos o espírito do Natal, mas o pai do Ali não entendeu. O espírito de paz, harmonia, união e fraternidade, esse sim o verdadeiro espírito do Natal, não é restrito a uma só religião, mas certas pessoas, cegadas pelo fanatismo, não compreendem. Vocês são ainda crianças, são sinceras e sem maldade, por isso o Natal de certa forma é voltado a vocês. Você nos orgulha, filha, porque, assim como a mãe de Jesus, que tem o mesmo nome que o seu, esforça-se para que todos se contagiem com o maravilhoso sentimento de amor que o Natal representa.

— Não importa a religião ou o país onde se nasce — falou a mãe —, mesmo com nossas diferenças, todos somos iguais. 

Maria ouviu as palavras de seus pais com surpresa e admiração. Sabia que no dia seguinte teria muito o que contar a seus amigos, assim que voltassem a se encontrar. 

Mas não houve dia seguinte. À véspera do Natal, o carvalho esquisito agitou seus galhos pela última vez. Pela manhã, um avião militar carregado de explosivos caiu sobre o povoado, dizimando quase toda a população. Mais uma vez, a guerra e o ódio mostravam seu maléfico poder. Mas não triunfaram sobre o espírito de paz do Natal, que um dia haverá de conquistar todos os corações humanos.

Quem me contou esta história foi minha avó Maria, a única sobrevivente do ataque ao seu povoado, há quase setenta anos. Após ser retirada de escombros por bondosos pastores, a menina encontrou um novo lar, mudou-se para o Brasil e aqui constituiu família. Ela nunca esqueceu aquele Natal que, apesar de ter sido o mais triste, foi ao mesmo tempo muito feliz, pois fez duas grandes amizades que guarda até hoje no coração, porque venceram os limites do tempo e as barreiras da intolerância.

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